sábado, abril 07, 2012

Satori


Para ser, tenemos que narrarnos, y en ese cuento de nosotros mismos hay muchísimo cuento: nos mentimos, nos imaginamos, nos engañamos. Lo que hoy relatamos de nuestra infancia no tiene nada que ver con lo que relataremos dentro de veinte años [...] de manera que nos inventamos nuestros recuerdos, igual que decir que nos inventamos a nosotros mismos, porque nuestra identidad reside en la memoria, en el relato de nuestra biografia. (Rosa Montero - La Loca de La Casa)

"Você deve ser a única pessoa que pensou em ser fotógrafo de skate e acabou em Brasília, no meio político, vendo um monte de sujeira, fazendo o que muitos queriam fazer" (Adriana)



Pode ser que as coisas não tenham ocorrido da forma como lembro. Que eu tenha inventado essa memória. O fato é que, mesmo ciente de que isso pode não passar um episódio autobiográfico fictício, a imagem acima é como meu satori, marco zero, o fio condutor da minha biografia. Tudo porque, em algum momento, me convenci de que, por um ato do que chamamos destino, devo à foto acima ter me tornado o pouco que sou hoje. E também ao Alan, o porteiro do prédio onde morei dos oito aos 30 anos. Afinal, era dele a revista que continha a dita imagem.

Explicando. Eu devia estar com 13 para 14 anos. Morava em Santos e minha vida se resumia a ir à escola, brincar, zanzar pela praia sem nada o que fazer e assistir tv. Pouco para um adolescente ávido por aventura e emoções mais fortes, que descontava a falta de ambos portando-se da pior forma possível. Comportamento que não tardaria a motivar uma nada sutil recomendação para que não tentasse me rematricular no mesmo colégio público e na tentativa de outros condôminos de expulsar a mim e a minha família do prédio em que vivíamos. Fora outros tropeços, por sorte, sem maiores consequências.

Foi justamente nesta época que o Alan passou a trabalhar na guarita do meu prédio. Jovem, com menos de 30 anos, um filho e um casamento se esfacelando, ele pegava onda, tocava violão e, de vez em quando, dava uns rolês de skate para não perder o jeito. Não me recordo mais como, mas nos tornamos amigos. Eu já começava a curtir rock´n´roll, ouvindo AC/DC, ZZ TOP e descobrindo aos poucos outras bandas. Passávamos longas horas conversando. Hoje, me espanto pensando na paciência que ele deve ter tido para lidar com o garoto rebelde e cheio de convicções que eu era então.

Embora insistisse em destacar as emoções de correr ondas, me estimulando a tentar, o Alan acabou por me apresentar ao skate. Depois, trouxe algumas velhas revistas importadas que tinha conseguido Deus sabe lá onde. Ao folhear distraidamente uma delas (acho que uma Transworld), me deparei com uma matéria sobre o skatista norte-americano Tony Alva, um dos prímeiros ídolos profissionais do esporte.

Me deslumbrei e jamais esqueci o impacto que a foto acima teve sobre mim. Foi automático. Passei a respirar skate e a professar tal fé. Aquilo era anárquico, ilimitado, debochado, perigoso, assustador. Era, como mostrava a foto, algo incendíário do qual eu queria fazer parte. Não quis mais saber das provas de atletismo, única coisa na qual eu havia me destacado até então. Nem de ouvir um treinador me dizer onde eu tinha que me posicionar numa quadra ou campo. Muito menos que o kata não estava harmonioso.

Não havia futuro para além das várias tentativas necessárias até acertar uma nova manobra. Minha meta era provar ser possível chegar e sair de qualquer lugar sem descer do skate, transpondo aos obstáculos por qualquer meio imaginário possível. Não importavam os ralados, as cicatrizes, os tombos, mas sim a sensação que o futebol com a turma ou qualquer outro esporte jamais havia me proporcionado. Simplesmente porque skate não era uma modalidade esportiva, mas sim um estilo de vida ainda incompreendido e que incomodava a muitos. Não era algo que alguém praticasse para se tornar mais sociável ou bem-visto entre as meninas. E muito menos algo que meus pais quisessem me ver praticando.

Aos 14 anos, ganhei minha primeira bicicleta. Apesar de ser de segunda mão, era linda - velha, mas nova aos olhos dos meus pais. Não deve ter se passado um mês para que eu a trocasse por um skate podre, feito com eixos e rodas de patins e um shape arredondado, feito em casa, serrado de uma madeira qualquer. Os velhos não ficaram nada felizes e prometeram não voltar a me dar qualquer outro presente que eu pudesse trocar por um skate. O que resultou na primeira mudança...na verdade, na elaboração do meu primeiro e incipiente "projeto de vida" a seguir. Como dizem, a necessidade faz a ocasião.

Tendo que trocar de colégio e querendo encontrar um jeito de ganhar a grana necessária para sustentar meu vício, aceitei a proposta de uma prima e entrei no Senai como menor aprendiz contratado por uma empresa de fertilizantes, de Cubatão (local feio e poluído onde eu tinha que trabalhar nas férias, três meses ao ano). Para isso, tive que estudar e me submeter a um processo seletivo no qual alguns amigos muito mais dignos das expectativas foram barrados. Não sei o quanto meu resultado foi fruto do fato de eu ter me dedicado a estudar com afinco, pensando que se não fosse aceito, acabaria tendo que ir trabalhar como empacotador em um supermercado para conseguir o dinheiro para comprar um skate e o quanto isto demoraria. Foi, portanto, graças ao skate, que não parei de estudar e me tornei, para minha própria surpresa, torneiro mecânico.

Quando deixei o Senai, já sabia que não queria trabalhar numa indústria e passar o dia atrás de um torno ou de uma plaina. Além disso, com o dinheiro que ganhava, decidi aprender inglês para poder ler as revistas importadas de skate, sonhando em, um dia, me mandar pra Califórnia, terra das ruas de asfalto liso onde acreditava ser possível se deslocar para todos os lados sem descer do carrinho. Como sempre gostei de ler, consegui emprego em uma livraria, onde tinha acesso a todas as revistas gringas que não podia comprar.

A livraria, contudo, era apenas parte de um plano. Embora andasse razoavelmente bem, eu já sabia que jamais me tornaria um skatista profissional. Isto nunca foi minha meta. Simplesmente porque não andava de skate para os outros. Sabia, portanto, que precisava pensar em como ganharia dinheiro no futuro que se aproximava cada vez mais rapidamente como se eu, equilibrado sobre o skate, avançasse de encontro a ele. Foi aí que me lembrei do início de tudo. Da foto de Tony Alva descolando as rodas da piscina em meio às chamas. E me dei conta da minha paixão pelas imagens das revistas de skate, que colecionava. E pensei, por que não? Vou ganhar dinheiro vivendo do skate, de sua mística, seu lifestyle. Vou me tornar um fotógrafo de skate.

Levou anos ainda para que eu, à duras custas, chegasse à faculdade de jornalismo. Onde, ao invés de desenvolver o talento para a fotografia (que, ainda hoje, gosto de crer, tenho), acabei seguindo por outro caminho. Uma outra direção que apontava para distante do skate, mas para a qual a rebeldia e o não-conformismo da adolescência me seriam de grande valia, ajudando-me a fazer o que acho que deve ser feito.

Ao chegar à faculdade eu já havia descoberto a emoção, a experiência mística, de que o Alan falava quando tentava me convencer a surfar. Já não andava mais de skate, embora ainda acompanhasse a evolução do esporte, as vitórias dos atletas brasileiros no exterior. O tempo passou. Não me tornei um fotógrafo, nem tampouco comecei a escrever para revistas de skate. Encontrei uma outra forma de ganhar o dinheiro de que preciso, mas foi necessário que eu me mudasse para Brasília. O que me levou a voltar a montar um carrinho e dar uns rolês. Inicialmente para compensar a distância do mar.

Não tive que reaprender muita coisa. Parte do conhecimento a respeito do que meu corpo soubera fazer antes ainda estava lá, incubado, esperando uma chance de se manifestar. De forma que não demorou para eu sacar que minha personalidade carrega muito do que aprendi naquelas sessions após as aulas, na companhia do Flavinho, Gugu, Leitão, Daniel (baterista do Garage Fuzz), Arrepiado (câmera do CQC), Maurício, Takeu, Berola e outros tantos de que não me lembro mais o nome.

O que aprendi que me serve ainda hoje? Difícil explicar, mas, por exemplo, que, antes de mais nada, você deve se divertir fazendo (skate for fun). Que uma vez contagiado pelo "objeto esportivo peçonhento", o elemento levará para sempre inscrito em seu cérebro, em sua personalidade, a obsessão por sempre tentar fazer algo diferente a partir do que já domina. Que para acertar a manobra mais complexa você primeiro deve dominar a "base". De que o "melhor" é algo subjetivo, condicionado pelas referências de quem julga. E que o olhar enviesado quando você passa apressado, barulhento e amarradão pode ser a incompreensão ou o medo dos caretas ineptos.

Devo algo, portanto, a Tony Alva. Ao fotógrafo daquela revista. Ao Alan. Aos meus amigos. E, principalmente, ao skate. Ainda que eles nada tenham a ver com a política ou com os problemas de que hoje sei.





Nenhum comentário: