sexta-feira, junho 08, 2012

Após 55 anos inspirando leitores, `biblia´ beat chega aos cinemas

"A publicação de On The Road é um evento histórico, na medida em que é o surgimento de uma genuína obra de arte que concorre para desvendar o espírito de uma época. É a mais belamente executada, a mais límpida e mais importante manifestação feita até agora pela geração que o próprio Jack Kerouac, anos atrás, batizou de beat. E da qual ele próprio é o princial avatar" - Crítica de Gilbert Millstein, publicada no jornal The New York Times, em setembro de 1957, após o lançamento do livro On The Road.

"Eu era um jovem escritor e tudo o que eu queria era cair fora. Em algum lugar ao longo da estrada eu sabia que haveria garotas, visões e tudo o mais. Na estrada, em algum lugar, a pérola me seria ofertada". - Trecho de On The Road.

Foi necessário que se passassem 55 anos e que um brasileiro produzisse, com sucesso, um filme (Diários da Motocicleta) sobre as viagens do guerrilheiro cubano Che Guevara para que um clássico da literatura do século XX, considerado a bíblia de ao menos duas gerações de jovens desencantados com "o sistema", chegasse às telas de cinemas de todo o mundo.

Enfim, estreia ainda este mês o mais recente filme de Walter Salles, On The Road - Pé Na Estrada, baseado no livro homônimo do escritor norte-americano Jack Kerouack, o "pai" do movimento beat.

Por alguma razão, livros muito mais difíceis de serem adaptados, como Almoço Nu (Naked Lunch - adaptação de David Cronenberg para o livro de William Burroughs, autor também associado ao movimento beat)já haviam virado filmes, e nada das personsagens Saul Paradise e Dean Moriarty (respectivamente, Kerouack e seu parceiro Neal Cassady, "que possuía a energia vibrante de uma nova espécie de santo americano") ganharem vida.

Culpa, talvez, do desafio de transpor para o cinema a prosa espontânea e a autenticidade que caracterizam o estilo de Kerouac - razão maior do culto ao livro que, cerca de dez anos após ser lançado, foi adotado por hippies pacifistas e demais defensores de um utópico "drop out" sistêmico que se identificavam com a proposta hedonista da "geração beat", movimento inicialmente literário que, além dos três nomes já citados, incluía ainda Lawrence Ferlinghetti, Allen Ginsberg, Gregory Corso, entre outros. E que, em maior ou menor grau, seguiu influenciando autores como Charles Bukowski e logo se tornou um fenômeno comportamental.

Em linhas gerais, a trama do livro se resume às lembranças de duas viagens que Kerouack e Cassady fizeram, ainda na década de 1940, de costa a costa dos Estados Unidos, ao longo da mítica Route 66, parando em postos de beira de estrada para comer as folclóricas tortas de maçã norte-americanas e buscando sábios vagabundos e aloprados e garotas bonitas a fim de diversão. Gozando de uma liberdade pós-Guerra Mundial, mas já desconfiados em relação ao questionável "american way of life".

A questão é que, em literatura, importa mais o como se diz do que o que se quer dizer. E a forma como Kerouack narrou suas lembranças e conclusões, cuspindo as palavras em uma única bobina de papel para telex de 36 metros de cumprimento (diz a lenda que em apenas três semanas), dando livre fluxo a sua imaginação, resistindo ao máximo à auto-censura, fez a cabeça de milhares de jovens ao longo destas cinco décadas de mudanças às quais o livro resiste dignamente.

"Embarcamos juntos numa viagem tremenda. Estamos tentando nos comunicar com absoluta honestidade, transmitindo com absoluta exatidão tudo que se passa pelas nossas cabeças", diz o alter-ego do autor, no livro.

Sexo livre, drogas, filosofia oriental, desencanto político... Cada página do livro que melhor retratou parte importante do espírito norte-americano dos últimos 50 anos) traz algo destes elementos, descritos em um estilo literário que procurava se apropriar da liberdade inspiradora do aceleradíssimo jazz bebop... "que, nessa época, se alastrava loucamente pela América e estava em algum ponto entre o período ornitológico de Charlie Parker e outro período que começou com Miles Davis [...]. E enquanto eu estava sentado ali ouvindo aquele som, pensei nos meus amigos espalhados de um canto a outro da nação. E pela primeira vez na minha vida, na tarde seguinte, segui para o Oeste".

NÃO OBSTANTE ... Kerouac mais tarde se revelaria um caipira nacionalista e alcoólatra fortemente influenciado pelo catolicismo. Vivendo como um eremita junto a sua mãe, antes de morrer, em 1969, o escritor concedeu raras entrevistas em que mencionava à ameaça comunista, destacava a distância entre o movimento beat e o escapismo hippie e apontava a deturpação do que considerava os ideais do movimento que ajudara a criar.

"Como bom católico, eu nunca usei as palavras rebelião ou insurreição [associadas ao termo] beatnik. A idéia que eu tinha imaginado era de que a "geração beat" seria uma geração de beatitude, de pessoas que amavam o prazer, a vida e a ternura". 

Agora, é esperar que Hollywood tenha dado liberdade ao diretor Walter Salles. E que o brasileiro tenha feito juz ao convite e ao desafio de dirigir o filme, que lhe foi feito por ninguém mais, ninguém menos, que o "Poderoso Chefão" Francis Ford Coppola. A conferir. 

Nenhum comentário: